6 de outubro de 2013

Conto: memórias de amor I

   Acordou saudosa lembrando de um tempo há tempos deixado para trás. Um tempo em que seu corpo ainda não carregava as marcas das lembranças nem sempre tão boas. As dores musculares eram só porque havia dançado muito na noite anterior.
   Lembrou de quando sua maior preocupação era a escolha do curso universitário ou que roupa vestir naquela noite para encontrar os amigos.
   Olhou com firmeza para suas mãos e entendeu que cada linha que ali insistia em se desenhar tinha uma história. e em especial uma veio a sua mente, seu primeiro amor. 
   Um menino nem tão bonito, afinal suas espinhas pareciam muito maiores que sua beleza, mas ela sabia que, no fundo, morava um belo rosto. O que mais a encantava era a vivacidade e a "malandragem" do rapaz. 
   Estudavam na mesma classe, mas trocavam poucas palavras e olhares intensos. Ele, aluno do fundão, repetente e quase nunca copiava a lição, assim tinha motivos para estar mais próximo a amada, o caderno que podia levar para casa e sentir o perfume dela,  a firmeza dos dedos em cada traçado, o desenho perfeito de cada letra. Sim, esse era o mais próximo que podiam estar juntos. 
   Ela sabia que seu caderno estava ao alcance das mãos do amado, que ficava próximo ao seu corpo enquanto ele o levava para casa e que seu olhar o fitava atento a cada linha copiada.
   O que será que acontecia com esse caderno quando se fazia presente nas mãos de seu amado? Será mesmo que ele o usava para copiar o que intencionava? Ou  que o mantinha fechado sem nem mesmo lembrar que ele estava ali? 
  Um dia desafiou sua timidez e escreveu em um pedaço de papel, não um papel qualquer, mas sua melhor folha de papel de carta e  colocou no meio das folhas seguras pela brochura.

 De tudo, ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.
 


Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento.

E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama

Eu possa dizer do meu amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dur
e.
Vinícius de Moraes

   Esperava ansiosamente o dia seguinte para descobrir se ele havia visto o poema e se havia entendido quem era o destinatário, por fim, se havia resposta.
   Dormir foi difícil, pois seus pensamentos se mantinham na brochura e nas repostas as suas intenções.
   O relógio despertou e o coração batia forte. No caminho da escola, que parecia mais longo que o habitual, ela não desligava seus pensamentos.  A escadaria que levava ao segundo andar parecia mais alta. 
  Lá estava ele com um largo sorriso no rosto ao lado de seus colegas. Os olhares se cruzaram e ela entendeu a mensagem.
  Ele levanta-se, devolve o caderno e lhe agradece.
  Ela queria abrir a brochura naquele momento, mas a ansiedade bloqueava a ação. Se manteve ali, quase que em estado catatônico, tentando não lembrar que ali podia haver a resposta ao seu amor.
  
   Ainda hoje,  guarda em sua caixa de memórias uma folha nem tão bonita quanto seu papel de carta, na verdade uma olha arrancada de um caderno antigo:

Há pessoas que nos falam e nem as escutamos, há pessoas que nos ferem e nem cicatrizes deixam mas há pessoas que simplesmente aparecem em nossas vidas e nos marcam para sempre.
Cecília Meireles
 Karina Moschkowich

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